Pular para o conteúdo principal

USUFRUTO. Notas práticas*


artigo do editor do blog publicado na revista Prática Jurídica, da Editora Consulex, em mai.2009

O titular do direito de propriedade pode transferir para o terceiro o direito de usar e fruir, como também o direito de dispor.
O usufruto é o direito real mais complexo. Em sede de usufruto, ocorre o desmembramento dos poderes do dominio, tanto é que o art 1.394 pontifica que o usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.[1],[2]
Trata-se, portanto, de direito real (art. 1.225, IV), cujas características marcantes são a temporariedade, uma vez que se extingue com a morte do usufrutuário (art. 1.410), e a inalienabilidade[3] (art. 1393). Surge por meio de lei, usucapião, ato vonluntário (contrato ou testamento)[4] ou mediante sentença.
Para Maria Helena Diniz o usufruto é direito real que confere ao seu titular a prerrogativa “de retirar, temporariamente, da coisa alheia os frutos e utilidades que ela produz, sem alterar-lhe a substância”. [5]
Quando recai sobre coisa fungível ou consumível, denomina-se usufruto impróprio, ou quase-usufruto.
É possível entabular um contrato de usufruto ou, na maioria das vezes, uma escritura pública de doação com reserva de uso e fruição.
O instrumento público é da essência do ato constitutivo, se o imóvel valer mais que trinta vezes o maior salário mínimo nacional (art. 108).

O usufruto foi desenvolvido, na técnica do Código Civil, para efetivar-se por meio de contrato (contrato de usufruto), assim como ocorre com um contrato de compra e venda ou de direito de superfície ou de servidão predial. Mas, no mundo real, ningúem concede usufruto para terceiro. O que costumeiramente concretiza-se é o usufruto deducto (doação com reserva de usufruto).
O usufruto em nosso sistema é uma cláusula, é acessório de um contrato de doação.
Se se questiona a natureza juridica do instituto, o cenário periga, não há unanimidade.
Caso o usufruto decorra de bem imovel, quando surge o direito real? Via de regra, por meio do registro no Registro de Imóveis. “O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.391).”
Mas há exceções: a) usucapião (art. 1.391, que inadvertidamente esqueceu do usufruto de direito de familia); b) direito de familia (art. 167, I, item 7, da Lei 6.015/1973: “do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família”.

O item 7 do inciso I do artigo 167 da Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos – LRP) origina-se dos arts. 745 e 748 do CC de 1916. Conecta-se, quanto ao usufruto, aos arts. 1.390 a 1.411 do CC de 2002. O item 7 do inciso I do artigo 167 da LRP é de natureza substantiva. Usufruto, uso e habitação são direitos reais classicamente denominados de “servidões pessoais”, por servirem a uma pessoa. [6]
Tais servidões “têm como objeto o uso e gozo limitado de uma coisa alheia, móvel ou imóvel, subordinada a uma pessoa, e não a outra coisa. Usufruto é direito real de uso e gozo temporário dos frutos de uma coisa, sem alteração de sua substância”, na lição de Regnoberto Marques de Melo Jr.[7]
A extinção das servidões pessoais exige cancelamento no Cartório de Registro de Imóveis para sua validade, ex vi do art. 1.410.
O preceito da LRP mencionado destaca o ônus registral necessário à constituição dessas servidões pessoais convencionais, quando tenham como objeto bem imóvel. As servidões pessoais instituídas por força de lei, embora possam ter como objeto bem imóvel, estão dispensadas do ônus registral em virtude da especialidade da norma da LRP.

Mas há outras exceções quanto à origem do usufruto. Cada bem móvel, por exemplo, tem que ser analisado separadamente.
No caso dos bens móveis em geral, o usufruto é gestado em um Cartório de Registro de Títulos e Documentos. A posse é outorgada ao usufrutuário. Faz-se o registro no domicilio do usufrutuário e a posse, em seguida, é-lhe concedida. Se se cuida de automóvel, o documento de transferência deve ser assentado no órgão executivo de trânsito (Detran, Ciretran); se for o caso de ações, deve ser levado a registro no livro respectivo para que a transferência gere efeito.

Direito real personalíssimo

O usufruto é direito real personalíssimo, relativamente ao usufrutuário. De conseguinte, é também inalienável.
A teor do art. 1.393 não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.
O dispositivo admite três interpretações: a) a cessão direitos de fruição não tem acesso ao sistema registral; b) alienação conjunta (consolidação) - proprietário e usufrutuário juntos alienando para terceiro; c) renúncia: usufrutuário poderia renunciar para o proprietário.
Mas pode o usufrutuário alienar para o proprietário? Tecnicamente, teria que renunciar o usufruto para o proprietário para pode alienar-se o bem para terceiro. Logo, o proprietário e o usufrutuário alienam seus direitos, no mesmo ato, nascendo, assim, a consolidação em favor de terceiro.

Complexidade do instituto

O Registro de Imóveis, por si só, é demasiadamente complexo. E quando se confrontam dispositivos do Código Civil atinentes ao usufruto e da LRP alusivos ao Registro Imobiliário, o nível de dificuldade do intérprete aumenta exponencialmente.
O fato é que as Faculdades de Direito ensinam um direito civil não funcional, como sabiamente alerta o Prof. Vitor Frederico Kümpel.[8] No momento de operar o sistema, problemas transbordam.

Temporariedade

O usufruto é também direito real temporário. Em relação à pessoa física, o prazo é estipulado; no silêncio, é vitalício. Mas em relação à pessoa jurídica, a lei estipula prazo de trinta anos (antes era de cem anos). Portanto, até 11 de janeiro de 2003, cem anos, sendo o título por meio do qual se travou o negócio jurídico tido como ato juridico perfeito.[9]

Divisibilidade

O direito real de usufruto é também divisível.[10]
Decorre dessa característica relevante questão atinente à lavratura de escrituras públicas sob os auspícios da Lei 11.441/2007. É possível a previsão de cláusula de indivisibilidade no usufruto? Na prática, ocorre a seguinte situação: os genitores se separam; o homem ou a mulher será usufrutuário; caso haja majoração de alimentos estipulados na separação, haverá concomitante cobrança de alugueres, por meioo de competente demanda em Vara Cível. De modo que deve-se tomar o cuidade de inserir a cláusula de indivisibilidade no usufruto.

Direito de acrescer

Em recente prova de concurso público, o tema foi explorado: pais doaram para os filhos e reservaram usufruto para si; caso um deles faleça, o que ocorreria com a cota de fruição?

Aplicado o Código de 2002, deveria ser acrescida, no silêncio, à do sobrevivente. Assim é porque, a teor art. 1.411, “constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente”.

Como dito, a lei criou uma regra, amparando um um instituto (o usufruto). Na prática, porém, pai e mãe doam para um filho reservando usufruto para si.
Assim, por demais retórica é a regra do art. 1.411. A cláusula de acrescer é reclamada, não adianta o silêncio.

Uma boa resposta, no exame, defenderia a premência de constar cláusula expressa de direito de acrescer; se quer que remanesça, então deve-se clausular.

Outro problema

Um testador deixa para um filho a nua-propriedade, estabelecendo em usufruto para Osman Lins e Murilo Rubião. Aqui é o contrário. No silêncio, há direito de acrescer. Caso não seja essa a intenção do testador, imprescindível a cláusula de retomada.

Consulte-se o art. 1.946:

Legado um só usufruto conjuntamente a duas ou mais pessoas, a parte da que faltar acresce aos co-legatários.
Parágrafo único. Se não houver conjunção entre os co-legatários, ou se, apesar de conjuntos, só lhes foi legada certa parte do usufruto, consolidar-se-ão na propriedade as quotas dos que faltarem, à medida que eles forem faltando.

Estrutura do usufruto

Sujeito

O sujeito é o proprietario pleno, útil, resolúvel, superficiário - todos estes podem dar em usufruto.
Note que não existe usufruto de usufruto.
Credor anticrético pode, se quiser, fazer concessão em usufruto, pelo prazo máximo da anticrese. E o compromissário comprador? Este também pode ceder em usufruto, no caso do compromisso de compra e venda registrado.

Objeto

O objeto do usufruto pode ser móvel, imovel e até bem fungivel (mas este desnatura, de certo modo o usufruto; ademais, os bens fungíveis só são os móveis). Assim, os bens móveis podem ser bens fungiveis ou infugiveis (os moveis compoem a figura do quase-usufruto).

A universalidade de direitos, nos termos do art. 2.018, pode ser objeto do usufruto.
“É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários” (art. 2.018).
O ascendente, neste caso, faz doação universal com reserva de usufruto, por meio de escritura matriz. Doa todo seu patrimônio, genericamente, sem especificar os itens, bens imóveis ou móveis etc., reservando-se usufruto de tudo. E assim constará do fólio real (Registro Imobiliário)

O artigo é o fundamento da escritura matriz, por meio da qual faz-se doação de todos os seus bens presentes e futuros. Conforme bens vão sendo adquiridos, requer-se ao oficial registrador proceder à doação com reserva de usufruto do respectivo bem, e assim por diante para os demais.

Forma

A forma de instituição é a mais ampla possível. O contrato pode ser oneroso ou gratuito. Pode ocorrer compra e venda com reserva ou doação com reserva.

NOTAS

[1] Art. 1.395. Quando o usufruto recai em títulos de crédito, o usufrutuário tem direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas.

[2] Quando não houver referência diversa, os artigos citados são do Código Civil de 2002.

[3] O exercício pode ser cedido: Art. 1.393. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.

[4] Art. 1.946. Legado um só usufruto conjuntamente a duas ou mais pessoas, a parte da que faltar acresce aos co-legatários. Parágrafo único. Se não houver conjunção entre os co-legatários, ou se, apesar de conjuntos, só lhes foi legada certa parte do usufruto, consolidar-se-ão na propriedade as quotas dos que faltarem, à medida que eles forem faltando.

[5] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18ª ed. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p. 372.

[6] MELO Junior, Regnoberto M. de. Lei dos Registros Públicos Comentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2003.

[7] Op. cit.

[8] Magistrado em São Paulo e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito de São Paulo.

[9] A despeito de ainda haver alguma polêmica, somos da opinião que o novo Estatuto Civil passou a ter eficácia e efetividade no dia 12 de janeiro de 2003, ressalvados todos os direitos adquiridos e atos jurídicos perfeitos, sob a égide do Código Civil de 1916.

[10] Lembrar que o direito de habitação não é divisível (não pode haver cobrança de aluguel (art. 1.415).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não comprovada fraude, deve ser respeitada a meação do cônjuge

Não comprovada a ocorrência de fraude, deve ser respeitada a meação prevista na sentença homologatória da dissolução da sociedade conjugal. Assim decidiu a 1ª Câmara do TRT da 15ª ao negar provimento a Agravo de Petição, tentando modificar sentença da Vara do Trabalho de Lorena, no Vale do Paraíba. O agravante é o espólio do cônjuge varão. A primeira instância havia julgado procedente em parte Embargos de Terceiro, liberando a penhora, correspondente a favor da agravada. O agravante insistia na penhora total do crédito, relativo à venda do imóvel. Segundo ele, não deveria prevalecer a meação da separação conjugal, objeto de acordo judicial, em face da invalidade dos documentos oferecidos como prova, pois não estariam revestidos das formalidades legais. Alegava, ainda, que a dívida trabalhista inseria-se na cláusula do acordo para dissolução da sociedade conjugal que recai sobre o imóvel, a ser suportado pelo cônjuge varão, tendo a agravada se beneficiado dos serviços prestados pelo Agr

Testamento público: publicidade equivocada

Por LUCAS DE ARRUDA SERRA O Testamento Público lavrado por Tabelião de Notas a primeira vista parece que por ser “Público” pode qualquer pessoa ter acesso ao mesmo. É público afinal?! Na verdade o Testamento Público é chamado de público por ser lavrado por Oficial público em seu livro Notas, e não que esteja à disposição de toda e qualquer pessoa que queira ter acesso as disposições de última vontade do testador. Maria Helena Diniz, ensina: “Não deve, pois, só porque chamado de `público´, ficar aberto, permitindo-se o seu acesso a qualquer pessoa” (Curso de Direito Civil Brasileiro, 6. Direito das Sucessões, 21ª edição-2007, pag. 203). O testamento é feito para ter efeito após a morte do testador e o seu prévio conhecimento pode causar alguns transtornos àquele que testou, não sendo prudente permitir que qualquer pessoa possa solicitar certidão e obtê-la, sem, no entanto, comprovar o óbito daquele que testou. O acesso enquanto vivo o testador pode ser permitido a ele mesmo ou a qualque

Integralização ou desincorporação de bens imóveis por instrumento público

Por Viviane Souza Vieira Dispõe o artigo 64 da Lei 8.934/94 acerca do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, nos seguintes termos: Art. 64 A certidão dos atos de constituição e de alteração de sociedades mercantis, passada pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou aumento do capital social. O Oficial de Registro de Imóveis analisa 8 hipóteses ante o registro da integralização ou desincorporação de bens imóveis (transferência de imóvel entre o sócio e a sociedade): 1. formação de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 2. aumento de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 3. redução de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 4. extinção de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial.; 5. formação de capital social de sociedade regist