Pular para o conteúdo principal

Em busca da presunção absoluta perdida...


Leitura atrasada, mas fundamental. Publicado há mais de dois anos no bom blog Observatório do Registro, o texto a seguir, de Alexandre L. Clápis, propõe reformulação do sistema registral, em prol de acentuar a segurança jurídica. Ouso tecer breve comentário - mais como discípulo que com qualquer pretensão outra.

Acertada e oportuna a rogativa, calcada no sistema do BGB. Mas, mesmo que positivássemos tal reclamo, estaríamos preparados para transpor a regra para o mundo real, à rés mesmo dos Serviços de Registro de Imóveis deste imenso país? De fato, em São Paulo, em pouco tempo, as serventias se adaptariam (se é que já não estejam!); aplausos para o sistema, muito eficiente, e para a competente Corregedoria-Geral de Justiça. Todavia, se nem mesmo a Lei 10.267/2001 e decretos regulamentadores têm perspectiva de plena aplicação, uma vez que há ainda Estados que até agora sequer realizaram registro de imóvel rural com georreferenciamento, como seria a transposição para nosso direito da presunção germânica de domínio pleno, incólume de ulterior desconstituição? E a esquálida descrição constante das matrículas no Pará, no Piauí, em Goiás, na Bahia (cujas serventias ainda encontram-se estatizadas), em Rondônia, no Amazonas, no Amapá... Apesar desta observaçao, creio que a defesa feita por Alexandre Clápis é assustadoramente válida, atualíssima, e consistente argumento para, mais e mais, defender o sistema registral, espancando qualquer dúvida quanto à primacial importância dos registros públicos no caminhar do Brasil em busca de desenvolvimento sustentado e socialmente justo.

Lafaiete Luiz

Ainda sobre a insegura segurança do nosso sistema registrário

Com todo respeito às opiniões divergentes o CC parece mesmo “desafinar” em sua contextualização.

Em nenhum momento se afirmou que o CC adotou a fé pública imobiliária. Aliás, há muito sabemos ou pelo menos recebemos as notícias doutrinárias de que nossa presunção é relativa.

Hoje isto pode ser uma constante em nossa realidade, mas a jurisprudência não teve tanta segurança após o advento do CC de 1916. Vale destacar que o STF apenas após a primeira metade do Séc. XX é que se manifestou pela relatividade da presunção registrária.

A fantástica obra de Soriano Neto (1940) foi um marco significativo para que o entendimento fosse este. Até então, parte significativa da doutrina (Clóvis, Lysippo, Philadelpho, dentre outros tantos) mantinha o entendimento de que a presunção não era relativa.
###
O problema da causa e da separação dos planos em relativos e absolutos como esclarece Couto e Silva (Obrigação como processo), no meu entender, não afasta nem afeta a possibilidade da presunção absoluta.

Em nosso direito a tradição e transcrição são os modus de aquisição, constituição e transmissão de direitos reais, respectivamente, sobre coisas móveis e imóveis e que tem como causa um negócio jurídico inter vivos, um título.

A teoria do título e do modo, que repousa sobre a TRADITIO romana em que tinha unidade, influenciou o direito medieval e foi desdobrada em dois conceitos distintos: Iusta causa – que é a sede do elemento volitivo ou do animus; e o Corpus – que é o elemento material da transmissão da posse. Possível visualizar nestes conceitos as noções aristotélicas de “possibilidade” e “efetividade”.

POSSIBILIDADE diz respeito ao animus (ou à vontade);
EFETIVIDADE refere-se ao corpus (ou a exteriorização da transferência, à tradição)

Na aquisição das coisas móveis a publicidade - que faz as vezes do registro nas hipóteses imobiliárias - é a que decorre da tradição - da entrega - e da posse sucessiva aquela – é a visibilidade decorrente da transferência da posse.

Vale frisar que na transmissão de coisa móvel o negócio jurídico gera apenas direito pessoal, ou seja, para o alienante a obrigação de entregar a coisa e para o adquirente o direito de recebê-la. O cumprimento da obrigação se dá com a tradição que, uma vez realizada, transfere o domínio da pessoa do alienante para a do adquirente.

Há autores, como Lacerda de Almeida, que afirmam que a tradição “é o contracto do Direito das Cousas, contracto abstrato, independente da causa, e que tem por objeto a transferência do domínio ou de algum direito de fruição, de guarda ou de garantia que se exerce sobre as cousas.” (Direito das Cousas, pág. 174, de 1908). Ou seja, que a tradição é outro contrato diverso do obrigacional.

Portanto, o problema da causa (com os planos relativos ou absolutos) não justifica a questão de existir ou não a fé pública. O civilista acima mencionado afirmava que a tradição é contrato abstrato. Em outras palavras, que se afastava de seu título causal para surtir efeitos de novo contrato.

De acordo com o art. 1268 do CC atual a tradição não aliena a propriedade se feita por quem não era dono. Exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar como dono.

Nosso CC adotou a corrente do BGB – que explicitamente prestigia o princípio da abstração -, e possibilitou o não questionamento em certas circunstâncias para aquisições de coisas móveis.

No CC Alemão, se o adquirente estiver de boa-fé e a coisa for entregue pelo que se mostra proprietário, adquirirá a propriedade (§932, §932 a, §933 e §934).

Ora, parece evidente, na minha modestíssima opinião, que se as coisas (tal como definidas no §90 do BGB) móveis podem gozar de presunção absoluta observados certos requisitos, vacilou o legislador em não estender maior proteção às aquisições imobiliárias onerosas e que estejam revestidas de boa-fé.

Lafayette afirma que: “a transcrição, em substância, não é senão a tradição solene do imóvel alienado.” (Tomo I, pág. 148).

Nossa legislação caminhou através dos séculos para chegar no patamar de entendimento da presunção relativa do registro aquisitivo do direito real. Mas penso que devemos seguir adiante.

Sequer força constitutiva a transcrição tinha no passado. E hoje é relativa a presunção. Será que não devemos prosseguir?

Há que se fazer uma retrospectiva histórica para entender a evolução legislativa da atual presunção relativa. Isto todos aqui conhecem profundamente.

A tão aclamada lei de terras (Lei 601 de 1.850, regulada pelo Decreto nº 1.318, de 1854) não teve outro objetivo senão segregar as terras públicas e legitimar a aquisição das posses naquelas propriedades já ocupadas. Isto porque do regime das sesmarias até o advento da referida lei a ocupação do solo ocorreu sem qualquer espécie de título; ocorria mediante a simples tomada de posse.

No referido Decreto nº 1.318 de 1854 havia a obrigação legal para que todos os possuidores, qualquer que fosse o título, registrassem suas terras (art. 91), perante os Vigários das Freguesias em que localizado o imóvel (art. 97), eis o famoso registro do vigário.

A transmissão do imóvel se dava, portanto, com a simples transferência da posse; a tradição era a publicidade, pois era o que indicava externamente a troca de titularidade.

Com o passar dos anos a tradição foi desvirtuada; deixou de ser fato visível. O constituto possessório e a saisine, a exemplos, colaboraram com a fragilização da tradição.

A Lei Orçamentária nº 317, de 1843, regulamentada pelo Decreto nº 482, de 1846, criou a inscrição (registro) de hipotecas, em decorrência da necessidade de tornar a propriedade imóvel base para a concessão do crédito. Aqui é possível identificar a força econômica como responsável por gerar o embrionário sistema registrário.

A inscrição (registro) de hipotecas não deu os resultados esperados, especialmente porque faltavam os requisitos de especialidade e publicidade. Diante da escassa utilização resolveu-se estender também para a transmissão da propriedade. Evolução do conceito!

Surgiu, então, a Lei nº 1.237, de 24/09/1864, que reformou a legislação hipotecária e criou o registro geral (art. 7º). O §2º do art. 6º desta lei estabeleceu que os ônus reais NÃO poderiam ser opostos aos credores hipotecários se não transcritos antes da hipoteca. Eis uma outra importante evolução!

O Registro Geral compreendia: “a transcrição dos títulos de transmissão dos imóveis suscetíveis de hipoteca e a instituição de ônus reais.” (art. 7º).

Vale destacar que o art. 8º desta mesma lei estabeleceu que a transmissão, onerosa ou gratuita, entre vivos, dos bens passíveis de hipoteca – que eram todos os imóveis corpóreos de acordo com o art. 2º, §§ 1º e 4º -, assim como a instituição de ônus reais, somente operariam efeitos em relação a terceiros com a transcrição no registro geral.

O § 4º do dito art. 8º da lei 1237/1864 e o art. 258 do Decreto 3453/1865 estabeleceram a idéia de que a transcrição não induzia prova de domínio, que ficava salvo de quem o fosse.

A validade da aquisição ficou subordinada aos requisitos do título – que deveria ser encadeado com os dos antecessores - e à circunstância de pertencer o imóvel ao alienante (Soriano Neto).

A Lei 1237/1864 e o Decreto 3453/1865 foram substituídos pelo Decreto nº 169-A/1890, que manteve idêntica redação dos citados dispositivos.

Sobre os efeitos da inscrição a legislação da época (Lei 1.237/1864 e o Decreto nº 169-A/1890) atribuiu força constitutiva ao título; aproximou-se, assim, do sistema francês. E, por conseqüência, afastou-se diametralmente do sistema alemão ao estabelecer, no § 4º do dito art. 8º, que “a transcrição não induz a prova do domínio que fica a salvo de quem for.”

O CC de 1916 incorporou o Registro Geral, porém com nova denominação de REGISTRO DE IMÓVEIS (arts. 856 a 862).

Os arts. 530 e 531 do CC de 1916 elencaram os tipos de títulos que deveriam ser transcritos para aquisição, constituição e transferência de direitos reais e incluiu os documentos judiciais e as transmissões causa mortis que não haviam sido previstos nas leis anteriores. Mais evolução!

O CC de 1916, no art. 859, ao contrário da orientação contida no § 4º do art. 8º da Lei 1237/1864 e no Decreto n 169-A/1890, introduziu a presunção juris tantum da transcrição ao estabelecer que: “Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo o nome se inscreveu, ou transcreveu.”

Eis uma outra importantíssima evolução!

Mas infelizmente parou por aí.

O mesmo entendimento da 1ª metade do Séc. XX perdura em nossos dias. É preciso avançar.

Entendo que o cadastro não deve ser a base do Registro de Imóveis, mas os direitos reais nele refletidos. Ressalvadas outras opiniões, o registro refere-se a direitos. O cadastro é incumbência de outras finalidades, ainda que multifinalitário.

O sistema alemão em que se afirma dominar a abstração (o que é absolutamente correto) depende da conjugação de certos elementos que culminam no princípio geral da publicidade material sob a forma da fé pública. Em resumo:

· estabelece o §873 do BGB a necessidade de um “acordo do titular e da outra parte” para a transmissão da propriedade ou para a sua oneração;

· as partes precisam declarar novamente o acordo exigido pelo §873, perante o “registro de imóveis”, como determina o §925 – trata-se do princípio da abstração – o acordo exigido é desconsiderado no momento do registro apenas; eventual vício contido no título causal não contaminará a inscrição;

· de acordo com o §891 a inscrição gera presunção relativa de domínio, mas no §892 há a contemplação da fé pública que garante o direito real em favor do terceiro de boa-fé que acreditou no livro de imóveis; Philipp Heck, autor alemão, afirma que “o registro não pode mentir”, (ressalvadas as contraditas eventualmente inscritas ou do conhecimento do adquirente).

Vê-se que a causa não é o fundamento da fé pública prevista no §892 do BGB. Basta lembrar do mencionado §873 do mesmo diploma. Então, este não poderia ser o óbice para se pensar na fé pública registrária em nosso ordenamento. Não são conceitos conflitantes ou excludentes.
O art. 859 do CC de 1916 é cópia do §891 do CC alemão e foi inserido em nosso ordenamento de forma isolada, sem a conjugação com os demais dispositivos que estruturam o princípio da fé pública.

Mas devemos parar por aí?!

Ao contrário, previu-se no art. 860 a possibilidade de se atacar a inscrição caso não correspondesse a verdade.

A regra antes prevista no art. 859 do CC superado (“Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.”) NÃO foi repetida no CC atual. Também não se criou no novo CC sistema diverso daquele que foi superado. Ao contrário fragilizou-se ainda mais o sistema com o parágrafo único do 1.247.

Permanece a necessidade do título causal para o registro – que ainda se apresenta como modo de constituição, transferência (art. 1227) e aquisição (art. 1245) -. Mas não parece que isto afasta a possibilidade do princípio da fé pública.

O LEGISLADOR PODERIA TER CAMINHADO E BRINDADO NOSSO SISTEMA COM MAIS UMA EVOLUÇÃO!

Edmundo Gatti afirma que publicidade dos direitos reais e modo suficiente de aquisição de direitos reais são conceitos distintos, apesar de guardarem certa relação entre si. Diz que tais conceitos se afastam quando se atribui à tradição o requisito suficiente para constituição do direito real e deixa a publicidade apenas para dar notícia de tal fato a terceiros. Em contrapartida, os conceitos se vinculam quando a inscrição do ato é necessária para que produza efeitos tanto entre as partes quanto erga omnes. Novamente a causa não é obstáculo para a presunção absoluta. O reforço de confiança do sistema está no modo e não no título.

Mas a mutação jurídico-real é desdobrada em dois estágios: (i) a celebração do contrato, de um título causal e (ii) o correspondente registro.

Como o segundo se apóia no primeiro, ou seja, no título, sem que este se apresente regularmente constituído não se alcança o registro. Este, o registro, é que poderia ser mais confiável do que é hoje. O título é problema de profissionais outros.

Insisto no entendimento de Soriano Neto, com apoio em Lafayette, ao admitir que a “transcripção não é senão uma tradição solene;” (pág. 221). E que “a transcripção não visou outro fim mais do que dar maior solemnidade á tradição, fazendo-a conhecida de todos quantos sejam interessados em acompanhar a circulação da riqueza immobiliaria, operada pelos actos translativos do domínio dos bens immoveis e que sobre estes buscam assentar operações de credito hypothecario.” (pág. 230).

Se hoje a tradição é contemplada com maior proteção porque não estendeu o legislador ao registro (antes transcrição) também a mesma garantia, se este difere daquela pela maior solenidade?

Resumidamente o que temos hoje é:

· toda mutação jurídica-patrimonial necessita ser inscrita no Registro de Imóveis para que alcance o efeito erga omnes; (efeito com conteúdo muito esvaziado);

· a inscrição depende de negócio jurídico válido e faculdade de disposição do titular do direito real;

· a inscrição não purga eventuais vícios existentes no título a que lhe deu causa;

· tem presunção relativa, ou seja, é destituível por prova contrária; se não houver tal prova a inscrição permanecerá como verdadeira; AQUI É QUE SE PODERIA PENSAR EM MAIOR SEGURANÇA INDEPENDENTEMENTE DA CAUSA; há sempre a possibilidade de se pleitear perdas e danos nas hipóteses de prejuízos.

· é possível retificar ou anular a inscrição caso o teor não corresponda a verdade;

· pelo sistema atual persiste, para maior segurança, a necessidade de investigar os títulos de todos os titulares precedentes pelo prazo do usucapião, bem como cada um deles por meio de certidões forenses, para avaliar eventuais defeitos existente na cadeia dominial e riscos que possam comprometer a higidez do negócio.

A somatória de tudo, para mim ao menos, resulta em insegurança jurídica.

As situações de usucapião não se equiparam à fé pública posto que decorrem do conceito de aquisição originária.
Ainda sobre a insegura segurança do nosso sistema registrário.

Com todo respeito às opiniões divergentes o CC parece mesmo “desafinar” em sua contextualização.

Em nenhum momento se afirmou que o CC adotou a fé pública imobiliária. Aliás, há muito sabemos ou pelo menos recebemos as notícias doutrinárias de que nossa presunção é relativa.

Hoje isto pode ser uma constante em nossa realidade, mas a jurisprudência não teve tanta segurança após o advento do CC de 1916. Vale destacar que o STF apenas após a primeira metade do Séc. XX é que se manifestou pela relatividade da presunção registrária.

A fantástica obra de Soriano Neto (1940) foi um marco significativo para que o entendimento fosse este. Até então, parte significativa da doutrina (Clóvis, Lysippo, Philadelpho, dentre outros tantos) mantinha o entendimento de que a presunção não era relativa.


O problema da causa e da separação dos planos em relativos e absolutos como esclarece Couto e Silva (Obrigação como processo), no meu entender, não afasta nem afeta a possibilidade da presunção absoluta.

Em nosso direito a tradição e transcrição são os modus de aquisição, constituição e transmissão de direitos reais, respectivamente, sobre coisas móveis e imóveis e que tem como causa um negócio jurídico inter vivos, um título.

A teoria do título e do modo, que repousa sobre a TRADITIO romana em que tinha unidade, influenciou o direito medieval e foi desdobrada em dois conceitos distintos: Iusta causa – que é a sede do elemento volitivo ou do animus; e o Corpus – que é o elemento material da transmissão da posse. Possível visualizar nestes conceitos as noções aristotélicas de “possibilidade” e “efetividade”.

POSSIBILIDADE diz respeito ao animus (ou à vontade);
EFETIVIDADE refere-se ao corpus (ou a exteriorização da transferência, à tradição)

Na aquisição das coisas móveis a publicidade - que faz as vezes do registro nas hipóteses imobiliárias - é a que decorre da tradição - da entrega - e da posse sucessiva aquela – é a visibilidade decorrente da transferência da posse.

Vale frisar que na transmissão de coisa móvel o negócio jurídico gera apenas direito pessoal, ou seja, para o alienante a obrigação de entregar a coisa e para o adquirente o direito de recebê-la. O cumprimento da obrigação se dá com a tradição que, uma vez realizada, transfere o domínio da pessoa do alienante para a do adquirente.

Há autores, como Lacerda de Almeida, que afirmam que a tradição “é o contracto do Direito das Cousas, contracto abstrato, independente da causa, e que tem por objeto a transferência do domínio ou de algum direito de fruição, de guarda ou de garantia que se exerce sobre as cousas.” (Direito das Cousas, pág. 174, de 1908). Ou seja, que a tradição é outro contrato diverso do obrigacional.

Portanto, o problema da causa (com os planos relativos ou absolutos) não justifica a questão de existir ou não a fé pública. O civilista acima mencionado afirmava que a tradição é contrato abstrato. Em outras palavras, que se afastava de seu título causal para surtir efeitos de novo contrato.

De acordo com o art. 1268 do CC atual a tradição não aliena a propriedade se feita por quem não era dono. Exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar como dono.

Nosso CC adotou a corrente do BGB – que explicitamente prestigia o princípio da abstração -, e possibilitou o não questionamento em certas circunstâncias para aquisições de coisas móveis.

No CC Alemão, se o adquirente estiver de boa-fé e a coisa for entregue pelo que se mostra proprietário, adquirirá a propriedade (§932, §932 a, §933 e §934).

Ora, parece evidente, na minha modestíssima opinião, que se as coisas (tal como definidas no §90 do BGB) móveis podem gozar de presunção absoluta observados certos requisitos, vacilou o legislador em não estender maior proteção às aquisições imobiliárias onerosas e que estejam revestidas de boa-fé.

Lafayette afirma que: “a transcrição, em substância, não é senão a tradição solene do imóvel alienado.” (Tomo I, pág. 148).

Nossa legislação caminhou através dos séculos para chegar no patamar de entendimento da presunção relativa do registro aquisitivo do direito real. Mas penso que devemos seguir adiante.

Sequer força constitutiva a transcrição tinha no passado. E hoje é relativa a presunção. Será que não devemos prosseguir?

Há que se fazer uma retrospectiva histórica para entender a evolução legislativa da atual presunção relativa. Isto todos aqui conhecem profundamente.

A tão aclamada lei de terras (Lei 601 de 1.850, regulada pelo Decreto nº 1.318, de 1854) não teve outro objetivo senão segregar as terras públicas e legitimar a aquisição das posses naquelas propriedades já ocupadas. Isto porque do regime das sesmarias até o advento da referida lei a ocupação do solo ocorreu sem qualquer espécie de título; ocorria mediante a simples tomada de posse.

No referido Decreto nº 1.318 de 1854 havia a obrigação legal para que todos os possuidores, qualquer que fosse o título, registrassem suas terras (art. 91), perante os Vigários das Freguesias em que localizado o imóvel (art. 97), eis o famoso registro do vigário.

A transmissão do imóvel se dava, portanto, com a simples transferência da posse; a tradição era a publicidade, pois era o que indicava externamente a troca de titularidade.

Com o passar dos anos a tradição foi desvirtuada; deixou de ser fato visível. O constituto possessório e a saisine, a exemplos, colaboraram com a fragilização da tradição.

A Lei Orçamentária nº 317, de 1843, regulamentada pelo Decreto nº 482, de 1846, criou a inscrição (registro) de hipotecas, em decorrência da necessidade de tornar a propriedade imóvel base para a concessão do crédito. Aqui é possível identificar a força econômica como responsável por gerar o embrionário sistema registrário.

A inscrição (registro) de hipotecas não deu os resultados esperados, especialmente porque faltavam os requisitos de especialidade e publicidade. Diante da escassa utilização resolveu-se estender também para a transmissão da propriedade. Evolução do conceito!

Surgiu, então, a Lei nº 1.237, de 24/09/1864, que reformou a legislação hipotecária e criou o registro geral (art. 7º). O §2º do art. 6º desta lei estabeleceu que os ônus reais NÃO poderiam ser opostos aos credores hipotecários se não transcritos antes da hipoteca. Eis uma outra importante evolução!

O Registro Geral compreendia: “a transcrição dos títulos de transmissão dos imóveis suscetíveis de hipoteca e a instituição de ônus reais.” (art. 7º).

Vale destacar que o art. 8º desta mesma lei estabeleceu que a transmissão, onerosa ou gratuita, entre vivos, dos bens passíveis de hipoteca – que eram todos os imóveis corpóreos de acordo com o art. 2º, §§ 1º e 4º -, assim como a instituição de ônus reais, somente operariam efeitos em relação a terceiros com a transcrição no registro geral.

O § 4º do dito art. 8º da lei 1237/1864 e o art. 258 do Decreto 3453/1865 estabeleceram a idéia de que a transcrição não induzia prova de domínio, que ficava salvo de quem o fosse.

A validade da aquisição ficou subordinada aos requisitos do título – que deveria ser encadeado com os dos antecessores - e à circunstância de pertencer o imóvel ao alienante (Soriano Neto).

A Lei 1237/1864 e o Decreto 3453/1865 foram substituídos pelo Decreto nº 169-A/1890, que manteve idêntica redação dos citados dispositivos.

Sobre os efeitos da inscrição a legislação da época (Lei 1.237/1864 e o Decreto nº 169-A/1890) atribuiu força constitutiva ao título; aproximou-se, assim, do sistema francês. E, por conseqüência, afastou-se diametralmente do sistema alemão ao estabelecer, no § 4º do dito art. 8º, que “a transcrição não induz a prova do domínio que fica a salvo de quem for.”

O CC de 1916 incorporou o Registro Geral, porém com nova denominação de REGISTRO DE IMÓVEIS (arts. 856 a 862).

Os arts. 530 e 531 do CC de 1916 elencaram os tipos de títulos que deveriam ser transcritos para aquisição, constituição e transferência de direitos reais e incluiu os documentos judiciais e as transmissões causa mortis que não haviam sido previstos nas leis anteriores. Mais evolução!

O CC de 1916, no art. 859, ao contrário da orientação contida no § 4º do art. 8º da Lei 1237/1864 e no Decreto n 169-A/1890, introduziu a presunção juris tantum da transcrição ao estabelecer que: “Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo o nome se inscreveu, ou transcreveu.”

Eis uma outra importantíssima evolução!

Mas infelizmente parou por aí.

O mesmo entendimento da 1ª metade do Séc. XX perdura em nossos dias. É preciso avançar.

Entendo que o cadastro não deve ser a base do Registro de Imóveis, mas os direitos reais nele refletidos. Ressalvadas outras opiniões, o registro refere-se a direitos. O cadastro é incumbência de outras finalidades, ainda que multifinalitário.

O sistema alemão em que se afirma dominar a abstração (o que é absolutamente correto) depende da conjugação de certos elementos que culminam no princípio geral da publicidade material sob a forma da fé pública. Em resumo:

· estabelece o §873 do BGB a necessidade de um “acordo do titular e da outra parte” para a transmissão da propriedade ou para a sua oneração;

· as partes precisam declarar novamente o acordo exigido pelo §873, perante o “registro de imóveis”, como determina o §925 – trata-se do princípio da abstração – o acordo exigido é desconsiderado no momento do registro apenas; eventual vício contido no título causal não contaminará a inscrição;

· de acordo com o §891 a inscrição gera presunção relativa de domínio, mas no §892 há a contemplação da fé pública que garante o direito real em favor do terceiro de boa-fé que acreditou no livro de imóveis; Philipp Heck, autor alemão, afirma que “o registro não pode mentir”, (ressalvadas as contraditas eventualmente inscritas ou do conhecimento do adquirente).

Vê-se que a causa não é o fundamento da fé pública prevista no §892 do BGB. Basta lembrar do mencionado §873 do mesmo diploma. Então, este não poderia ser o óbice para se pensar na fé pública registrária em nosso ordenamento. Não são conceitos conflitantes ou excludentes.
O art. 859 do CC de 1916 é cópia do §891 do CC alemão e foi inserido em nosso ordenamento de forma isolada, sem a conjugação com os demais dispositivos que estruturam o princípio da fé pública.

Mas devemos parar por aí?!

Ao contrário, previu-se no art. 860 a possibilidade de se atacar a inscrição caso não correspondesse a verdade.

A regra antes prevista no art. 859 do CC superado (“Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.”) NÃO foi repetida no CC atual. Também não se criou no novo CC sistema diverso daquele que foi superado. Ao contrário fragilizou-se ainda mais o sistema com o parágrafo único do 1.247.

Permanece a necessidade do título causal para o registro – que ainda se apresenta como modo de constituição, transferência (art. 1227) e aquisição (art. 1245) -. Mas não parece que isto afasta a possibilidade do princípio da fé pública.

O LEGISLADOR PODERIA TER CAMINHADO E BRINDADO NOSSO SISTEMA COM MAIS UMA EVOLUÇÃO!

Edmundo Gatti afirma que publicidade dos direitos reais e modo suficiente de aquisição de direitos reais são conceitos distintos, apesar de guardarem certa relação entre si. Diz que tais conceitos se afastam quando se atribui à tradição o requisito suficiente para constituição do direito real e deixa a publicidade apenas para dar notícia de tal fato a terceiros. Em contrapartida, os conceitos se vinculam quando a inscrição do ato é necessária para que produza efeitos tanto entre as partes quanto erga omnes. Novamente a causa não é obstáculo para a presunção absoluta. O reforço de confiança do sistema está no modo e não no título.

Mas a mutação jurídico-real é desdobrada em dois estágios: (i) a celebração do contrato, de um título causal e (ii) o correspondente registro.

Como o segundo se apóia no primeiro, ou seja, no título, sem que este se apresente regularmente constituído não se alcança o registro. Este, o registro, é que poderia ser mais confiável do que é hoje. O título é problema de profissionais outros.

Insisto no entendimento de Soriano Neto, com apoio em Lafayette, ao admitir que a “transcripção não é senão uma tradição solene;” (pág. 221). E que “a transcripção não visou outro fim mais do que dar maior solemnidade á tradição, fazendo-a conhecida de todos quantos sejam interessados em acompanhar a circulação da riqueza immobiliaria, operada pelos actos translativos do domínio dos bens immoveis e que sobre estes buscam assentar operações de credito hypothecario.” (pág. 230).

Se hoje a tradição é contemplada com maior proteção porque não estendeu o legislador ao registro (antes transcrição) também a mesma garantia, se este difere daquela pela maior solenidade?

Resumidamente o que temos hoje é:

· toda mutação jurídica-patrimonial necessita ser inscrita no Registro de Imóveis para que alcance o efeito erga omnes; (efeito com conteúdo muito esvaziado);

· a inscrição depende de negócio jurídico válido e faculdade de disposição do titular do direito real;

· a inscrição não purga eventuais vícios existentes no título a que lhe deu causa;

· tem presunção relativa, ou seja, é destituível por prova contrária; se não houver tal prova a inscrição permanecerá como verdadeira; AQUI É QUE SE PODERIA PENSAR EM MAIOR SEGURANÇA INDEPENDENTEMENTE DA CAUSA; há sempre a possibilidade de se pleitear perdas e danos nas hipóteses de prejuízos.

· é possível retificar ou anular a inscrição caso o teor não corresponda a verdade;

· pelo sistema atual persiste, para maior segurança, a necessidade de investigar os títulos de todos os titulares precedentes pelo prazo do usucapião, bem como cada um deles por meio de certidões forenses, para avaliar eventuais defeitos existente na cadeia dominial e riscos que possam comprometer a higidez do negócio.

A somatória de tudo, para mim ao menos, resulta em insegurança jurídica.

As situações de usucapião não se equiparam à fé pública posto que decorrem do conceito de aquisição originária.

por Alexandre L. Clápis

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não comprovada fraude, deve ser respeitada a meação do cônjuge

Não comprovada a ocorrência de fraude, deve ser respeitada a meação prevista na sentença homologatória da dissolução da sociedade conjugal. Assim decidiu a 1ª Câmara do TRT da 15ª ao negar provimento a Agravo de Petição, tentando modificar sentença da Vara do Trabalho de Lorena, no Vale do Paraíba. O agravante é o espólio do cônjuge varão. A primeira instância havia julgado procedente em parte Embargos de Terceiro, liberando a penhora, correspondente a favor da agravada. O agravante insistia na penhora total do crédito, relativo à venda do imóvel. Segundo ele, não deveria prevalecer a meação da separação conjugal, objeto de acordo judicial, em face da invalidade dos documentos oferecidos como prova, pois não estariam revestidos das formalidades legais. Alegava, ainda, que a dívida trabalhista inseria-se na cláusula do acordo para dissolução da sociedade conjugal que recai sobre o imóvel, a ser suportado pelo cônjuge varão, tendo a agravada se beneficiado dos serviços prestados pelo Agr

Testamento público: publicidade equivocada

Por LUCAS DE ARRUDA SERRA O Testamento Público lavrado por Tabelião de Notas a primeira vista parece que por ser “Público” pode qualquer pessoa ter acesso ao mesmo. É público afinal?! Na verdade o Testamento Público é chamado de público por ser lavrado por Oficial público em seu livro Notas, e não que esteja à disposição de toda e qualquer pessoa que queira ter acesso as disposições de última vontade do testador. Maria Helena Diniz, ensina: “Não deve, pois, só porque chamado de `público´, ficar aberto, permitindo-se o seu acesso a qualquer pessoa” (Curso de Direito Civil Brasileiro, 6. Direito das Sucessões, 21ª edição-2007, pag. 203). O testamento é feito para ter efeito após a morte do testador e o seu prévio conhecimento pode causar alguns transtornos àquele que testou, não sendo prudente permitir que qualquer pessoa possa solicitar certidão e obtê-la, sem, no entanto, comprovar o óbito daquele que testou. O acesso enquanto vivo o testador pode ser permitido a ele mesmo ou a qualque

Integralização ou desincorporação de bens imóveis por instrumento público

Por Viviane Souza Vieira Dispõe o artigo 64 da Lei 8.934/94 acerca do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, nos seguintes termos: Art. 64 A certidão dos atos de constituição e de alteração de sociedades mercantis, passada pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou aumento do capital social. O Oficial de Registro de Imóveis analisa 8 hipóteses ante o registro da integralização ou desincorporação de bens imóveis (transferência de imóvel entre o sócio e a sociedade): 1. formação de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 2. aumento de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 3. redução de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial; 4. extinção de capital social de sociedade registrada na Junta Comercial.; 5. formação de capital social de sociedade regist